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A Visão de Elis

Arlindo Alves

 

"... os vossos velhos lerão sonhos, vossos jovens terão visões", Joel 2:28.

E o quarto encheu-se de uma luz estranha e misteriosa. Uma luz tão intensa que ofuscava os olhos. Tinha-se a impres­são de que o ambiente estava sendo iluminado por mil refletores. Era possível localizar um fio de cabelo no chão, tanto era a claridade. Os focos de luz vindos de todas as direções pareciam convergir sobre o único ponto: o rosto jovem, feminino e angelical, repousado sobre o travesseiro macio, inteiramente descoberto no leito solitário.

Elis dormia e sonhava com a luz. No próprio sonho tinha consciência de estar sonhando, mas assim mesmo tudo lhe pare­cia muito real, palpável, como se não dormisse, como se esti­vesse com os olhos bem abertos e contemplasse tudo, como numa visão!... Eram-lhe perfeitamente perceptíveis o som, a cor, o perfume, a caricia.... Distinguia nitidamente o ambiente familiar do quarto: a cama em que estava deitada, o guarda-roupa, a penteadeira e os frascos de perfumes, o abajur... Tudo envolto numa atmosfera surrealista.

Foi então que ouviu a Voz, aquela Voz que parecia estar vindo de muito longe, das alturas insondáveis. Descendo pelo teto, preencheu todos os espaços vazios, e chegou até seus ouvi­dos como um sussurro doce e inconfundível. Disse-lhe:

- Elis! Ao raiar do dia, ainda pela manhã, deves dirigir-te até a favela do extremo-leste da cidade. Lá encontrarás, entre os últimos barracos, um deles todo pintado rusticamente de azul e com uma paineira à frente. Nele mora uma família, cujo o pai já foi um dia um instrumento da minha vontade, mas agora se en­contra nas garras do adversário e até mesmo deixou-se envere­dar pelos vícios e, neste turbilhão, tem arrastado consigo todo o lar a mulher e dez filhos menores, lançando-os na miséria. O seu coração se endureceu e tornou-se insensível aos apelos do Espírito Santo. Entretanto, paguei por ele um alto preço e, por isso, ainda o quero para mim, para fazer dele um vaso de bên­çãos em minhas mãos. Ele não sabe disso, mas será uma honra e glória do nome do meu Pai.

- Tua missão, Elis, é fazê-lo saber a minha vontade e por cuja causa o tenho poupado todos estes anos, livrando-o da mor­te. Vai, Elis! Apressa-te e não te cales. Não há o que temer, porque estarei contigo. Através de teus lábios falarei. Não duvi­des, eu sou o Senhor. Cumpra-se a minha vontade e o propósito do teu coração. Eis que as tuas orações foram ouvidas no céu. Vai, portanto, e colhe os doces frutos da piedade. O sabor, po­rém, te será somente para a eternidade. A seara deitarás pela última vez, a tua foice.

A Voz  se foi e a luz também. O quarto voltou ao silêncio e à penumbra. Elis abriu os olhos e sentou-se na cama, perplexa. Até aonde tudo era apenas fantasia e começava a realidade? A expressão em seu rosto era de temor. Sua mente confusa, inda­gava: "Apenas um sonho ou uma visão do Céu?" Lágrimas bro­taram dos seus olhos profundamente azuis, e o seu peito explo­diu em soluções entrecortados. Num instante, acudiu-lhe à lem­brança a oração que fizera antes de se deitar: "Senhor, apenas uma coisa me tornaria infinitamente feliz. Sei que, participando dos inúmeros trabalhos da juventude de minha igreja, talvez, indiretamente, eu tenha contribuído para a salvação de alguém. Porém, gostaria muito de viver uma experiência mais íntima e pessoal; poder contemplar alguém que efetivamente tivesse se rendido aos teus pés por intermédio de minha participação direta."

Era isto! O Senhor ouvira a sua oração. Na própria visão, fê-la saber: "Eis que as tuas orações foram ouvidas no Céu." Restava-lhe cumprir o mandado do Senhor e provar a glória a que tanto anelava o seu coração!

Após o desjejum, Elis pôs-se a caminho da favela. A sen­sação que levava no peito era indescritível, um misto de ansie­dade e de receio. Sentia também algo estranho que procurava dissipar, mas que martelava em seu coração um irredutível pres­sentimento de morte: as últimas palavras da visão - "Vai, por­tanto, e colhe os doces frutos da piedade. O sabor, porém , te será somente para a eternidade. À seara deitarás, pela última vez, a tua foice."

O dia, uma segunda-feira, era o mais lindo de todos que Elis já vira em sua vida de dezoito anos. Embora fosse ainda manhã, o sol já se mostrava majestoso no céu. Os seus raios insidiam sobre a sua pele alva, dourando-a. A brisa suave que soprava, agitava-lhe os cabelos loiros e beijava o seu rosto de uma beleza terna e comovente. Seus olhos penetrante azuis, so­bressaíam-se nessa paisagem humanistica, quais vislumbres de esperança.

Não lhe foi difícil localizar o barraco descrito na visão, sua cor azul e a paineira na frente faziam com que ele se desta­casse entre os demais.

Embora fosse dia de trabalho, Elis encontrou toda a fa­mília em casa reunida, como se estivesse à sua espera. Cumpri­mentou-os e convidaram-na à entrar. Não a conheciam, mas mostraram-se afáveis com ela. Nesse particular  revela-se  a pre­sença de Deus, abrindo caminhos. E não há caminhos que Ele não abra, ainda que através do mais inéspito terreno. O coração do homem, às vezes, é assim uma área intransponível para o mesmo homem, mas não para Deus.

Uma vez na sala, não houve preâmbulos nem introdu­ções. Imediatamente, usada pelo Espírito Santo, Elis viu-se trans­mitindo a mensagem de Deus para aquela família, tal como lhe fora dado em visão. As palavras, ditas com determinação, dis­solviam os corações petrificados e, num momento, todos chora­vam e se arrependiam não resistindo ao toque veemente do Sal­vador.

Impossível determinar, com precisão, o tempo transcorrido neste clima de festa espiritual. Só se sabe que, quando tudo terminou, há muito que passava da hora do almoço e todos estavam famintos, mas não de pão material, porque do espiritual já estavam saciados.

Quiseram que Elis almoçasse com eles. Almoço de po­bre, ponderou o irmão (já se podia considerá-lo assim), mas ofe­recido de coração, para celebrar o fausto retorno ao seio do Bom Pastor.

Posta a mesa, Elis orou pela refeição e, mais uma vez, a presença de Deus foi sentida naquele lugar e naquelas vidas. Todos se serviram jubilosos. A alegria estampava-se naqueles rostos reencontrados e por nada deste mundo Elis queria vê-los entristecidos. Guardou silêncio.

Terminado o almoço, quando o irmão se retirou um ins­tante e a sua esposa entretinha-se em tirar os pratos da mesa, ainda em sua cadeira Elis sentiu uma mão pousar em sua cabeça. Lentamente, foi pendendo-a até pousar a fronte sobre a mesa. Todos acharam que se tratasse de cansaço. Elis devia estar se sentido esgotada pelo esforço de sua missão. Foi com este pen­samento que a irmã, aproximando-se, tocou-lhe o ombro e sus­surrou em seu ouvido: "Elis, venha descansar em nossa cama". Porém, obteve apenas o silêncio como resposta. Elis já descan­sava para sempre, nos braços do Senhor.